Recensões
Biologia do Homem
Mário Claudio, Público, 2004 (um dos livros do ano)
“Biologia do Homem”, de Jorge Reis-Sá, afirma um estimulante triunfo da noção de atmosfera, e da permanência das vozes de dentro, contra essa linha de exercícios mais ou menos gratuitos representada por uma poética da essencialidade que se contorce nas suas filosofantes platitudes.
Urbano Tavares Rodrigues, Jornal Primeiro de Janeiro, 2004
Biologia do Homem: um exercício irónico de amor
Jorge Reis-Sá é poeta, é romancista, ainda inédito, é o editor culto, ousado, necessário que todos conhecemos e mescla harmoniosamente essas suas múltiplas actividades numa permanente atitude de criação cultural, que nos torna seus devedores e nos leva a acompanhar empenhadamente toda essa desbordante energia.
Outra simbiose vou apontar, a do cientista que se completa no poeta e lhe dá voz neste seu rico e desenvolto livro de poemas, era verso e em prosa, que se intitula, não por acaso, «Biologia do Homem».
Mas não é apenas essa forma de conhecimento da vida, abordagem rigorosa e positiva, que anima estas sessenta e tal páginas meticulosas. Uma outra vertente mágica, carregada de intuições e de memórias, (da aldeia, da infância, de uma natureza quase sagrada) com ela conflui.
A intertextualidade, o diálogo mais ou menos explícito com outros poetas assume também papel relevante em «Biologia da Vida».
Obra de análise do ser e da sua vinculação ao universo, de interpretação profunda , do amor e da morte, é também ao mesmo tempo jogo e aventura, quer na viagem pelos sentimentos, quer na escolha e exploração da palavra.
Jorge Reis-Sá convoca para o seu livro outros rostos e outras vozes e com eles compõe vinhetas, ou poemas em prosa que são quase rostos (ou retratos) de personagens. Em tudo isto alguma coisa por vezes recorda o à-vontade de Ruy Belo no seu devanear pela memória e pela paisagem. Outras vezes a espessura do vivido e as marcas afectivas (a amada, o filho, o pai, os amigos, o companheiro que cresceu ao seu lado, os lugares singelos que se tornaram santuários do tempo e da mudança) crescem como ervas de um jardim a abrir-se ao mundo.
A ilustrar o que estou dizendo e assinalando ainda a mescla de lirismo e ironia da pintura rural ou da natureza encantada que Jorge Reis-Sá com frequência nos dá, cito este poema extremamente original:
«Em Montefebres existe Deus, está senta¬do à sombra das casas. A cara dos homens espera os anjos descerem do pastoreio e refugiam-se nos ninhos. Em Montefebres os riachos sulcam os montes e elaboram os vales. De noite, os grilos acompanham o canto das águas pendurados nas patas, seguros nas vinhas que lhes fazem na toca a sombra diária. As cabras esmagam as pedras e o calor. E não há morte. No monte das febres morreu-se a última vez há muitos anos, encostado às vinhas, saboreando o verão no fim da tarde pesado e quente, esperando que Deus sinalizasse a salvação.»
Outro poema, belíssimo também, esse com ecos de Vitorino Nemésio no diálogo subtil entre o gracejo e a graça e igualmente criador na conjunção do popular e do erudito é «Vasco Costa, Duarte Belo e eu».
Vale a pena referir ainda os versos bem fadados com que Jorge Reis-Sá equilibra, em «Buracos de Verme», o universo do conheci¬mento científico, descoberto não só em Newton e Einstein, mas nos vulgarizadores inteligentes que foram Cari Sagan e Steven Hawking, com os engodos e êxtases da infância, os grilos do quintal da avó de Ribeirão, o Ratinho e o Tucho, cães de volta, os sonhos e a percepção da cor ultra-violeta.
Lê-se este livro em permanente surpresa e simples deslumbramento.,É um texto claro e venturoso, cheio de amor ede humor e com algumas armadilhas verbais que são a promessa do mais e melhor que Jorge Reis-Sá nos vai ainda dar.
Aliás, com este livro ele firma sem dúvida um lugar de primeira linha entre os poetas da sua geração. Atento ainda na força e no boleado destes textos, que parecem nascer como linfa da serra e são já fruto de um excelente artesanato, com o costinuum verbal do discurso cortado por transportes frequentes de som e sentido, à boa maneira de Rimbaud.
Uma agilidade muito sua e um tu-cá-tu-lá perfeito no balanceio entre o pequeno Portugal minhoto e o apelo ao mundo através, por exemplo, de invocações que o situam na sua geração, como John Cale, Lou Reed, Laurie Anderson, a Adriana Calcanhotto, a Mafalda Veiga, o Camané, Wim Mertens, etc.
Não se pode passar em silêncio a autenticidade e a auto-ironia do dístico final:
«Porque procuro no poema final e definitivo a face de Deus, todos os versos que escrevi me hão-de condenar ao inferno.»
Se o inferno são os outros, no grande plano do huisclos, como sugere Jean-Paul Sartre, então o Jorge Reis-Sá não o verá, porque este seu livro é também uma prática (não uma prédica) de amor aos outros. Versos das coisas quotidianas escritos no rasto da memória
Ana Marques Gastão, Diário de Notícias, 2004
Se há algo que sobressai em Biologia do Homem, de Jorge Reis-Sá, é o entendimento do poema não como tecido obscuro ou excesso retórico, mas como esforço de nitidez ligado, de alguma forma, ao primado do sentimento. Não se trata aqui de abordar, mais intensamente, como em A Palavra no Cimo das Águas, o corpo como paixão, ou os sinais musicais das coisas frágeis e leves, mesmo na escuridão. Há nestes textos, até nos mais sombrios, um desejo obstinado de plenitude, de diurnidade, de presença perante os segredos do mundo no caminho elaborado da memória.
Biologia do Homem dir-se-ia um livro marcado pela continuidade de um Eu frágil, que se expressa numa muito maior narratividade. E esse é o caminho destes poemas, bem mais discursivos e ausentes da palavra, no sentido em que esta não vale como fim em sim, mas reflecte com mais vigor sensações, sentimentos, modos de estar na natureza. Esta selecção denota, também no uso da metáfora, não a imediatez do sentir, mas o espaço onde esse sentir ecoa, tantas vezes da ordem do indizível, do não escrito: «A mãe está sentada no alpendre a ver os advérbios passar» (A mãe está sentada no alpendre).
Mesmo o amor, no qual reside a possibilidade de existência do mundo, é memória enquanto «sensação que dura»: «Que a minha memória desafia o/leitor a imaginar os versos que não escrevo, dizer-te/poema final e definitivo, da completude dizer-te amor.» Não se trata de uma poesia de tensões esta, reside nela uma certa placidez, mesmo que englobe a dor, a comunhão, a alegria, a partilha na ligação entre interioridade e exterioridade. Nela paira uma doce inquietação.
Não há, pois, efeitos de amaneiramento sintáctico ou de acumulação retórica, mas a convocação de uma maior noção de ritmo, de configuração sensorial. E isto é feito por meio de uma escrita de não afectação, transfigurada por uma linguagem despida de ênfase.
Nessa medida, o poeta é sempre alguém em trânsito, alguém que passa, não necessariamente um caçador de sensações, mas, um caminhante, o flâneur de um imaginário, neste caso remontando tantas vezes à infância, à família, aos amigos, que persiste, avançando com a sua mão na direcção do desconhecido, do indizível e até do aceitável.
Em Biologia do Homem, o sujeito poético é o que está atento, dir-se-ia aquele que distingue e escolhe, aproxima e separa na afirmação do que torna indistinguível obra e mundo. Há, pois, uma relação com o inexprimível revelada neste livro como um gesto construtivo, de que o quotidiano não se ausenta, tendo em vista a unidade do ser como prioridade ontológica.
Neste seu livro, Jorge Reis-Sá não deixa de estar ligado ao mundo, aos gestos e coisas diárias, mesmo que a incerteza e a perturbação cubram alguns poemas de nostalgia e sombra. Se há um princípio biográfico em Biologia do Homem, não deixa de existir um certo distanciamento que reduz o perigo da confessionalidade excessiva. Afirma-se uma identidade, por vezes com alguma ingenuidade, mas sem incandescência: «(…) Dançávamos como dois anjos, sabes?,/mas isso não te digo porque é muito expressivo e fica mal/no Poema. Dançávamos heróis, é mais bonito.»
A maioria dos poemas arrasta consigo o peso da memória, anotações da vida comum, passagens entre um tempo e o outro. E o livro é atravessado por sopros de vida, resultando quase como único texto.
Também a morte assoma à porta nestes versos, como no livro anterior, mas deles resulta, sobretudo, a noção de que Reis-Sá se encontrou com uma sua voz poética.
Rogério Borges, O Popular de Goiânia, Brasil, 2005, edição brasileira
O Homem e a poesia
Um grande entendimento do que é a poesia, de corno ela se forma, do que ela pode causar ao leitor, de uma visão mais ampla e consistente do género. A leitura dos versos do autor português Jorge Reis-Sá, 29 anos, passa essa imagem. Mesmo jovem, ele tem uma produção de veterano, em poemas seguros, completos, de apuro estético e métrico, em que transparece até uma certa teoria da poesia. “Todo o poema e circunstância de um tempo e de um lugar./ Todo o poema é memória dessa circunstância. Todo o poema/’ é memória de um tempo e de um lugar Todo o poema é memória”, escreve ele em determinada altura, sinalizando com uma temática central de seu Imo Biologia do Homem, lançado no Brasil pela Editora Escrituras.
Um título que não deixa de trazer alguma ironia. O autor de¬fende sutilmente a união entre o orgânico e o abstrato, entre o tangível e o que não se pode mais locar. E, mesmo tão presente, o passado não permite mais o contato direto. Nas lembranças, muitas delas da infância do autor, passa¬da no Caminho de Candeeira – localidade que dá título a uma da partes do volume –, que a poesia de Jorge encontra abrigo para se soltar, com rigor técnico sim, mas nem por isso desprovida de uma autenticidade incontestável.
Muitos dos poemas de Jorge Reis-Sá são essencialmente narrativos. Um dos que mais se apoiam nesse estilo é O Quarto da Morta, deixa para o poeta falar de sua tenra idade e de suas experiências universitárias, que foram bem dispares da poesia. Ele esteve matriculado nos cursos de Astronomia e Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e chegou a fazer estágio no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da instituição.
O interessante é que o escritor consegue levar essa bagagem para dentro de sua poesia quase imperceptivelmente, em referências muito leves, sempre contextualizadas e pertinentes. Afinal, falar de estreias é algo poético por excelência. Olavo Bilac que o diga: “Ora (direis) ouvir estrelas!” Mas mesmo quando o poema toma feitio de prosa, Jorge tem a habilidade de manter o lirismo, num trabalho que reverencia o amor e muitos dos ícones da poesia portuguesa. Em Poderia Dizer-te, isso fica patente nas citações a Camões, Florbela Espanca e Ruy Belo. A forma com que Jorge dedica seus poemas a familiares, amigos ou grandes nomes da literatura também tipifica uma poética que tem raízes no cânone, em um passado em que o autor não se bastava para o poema, nem para escrevê-lo, tampouco para destiná-lo.
A poesia, assim como a vida, é feita de sentimentos conflitantes e isso é expresso com bastante sensibilidade por Jorge Reis-Sá. Em Poema ao filho, o pai lamenta o fato de seu filho crescer e ficar independente. Trata-se de uma poesia totalmente saudosista, mas é a saudade boa, de algo que faz falta e que fica no compartimento das recordações cheias de ternura. Diferente de A Morte Continuada, que versa sobre a perda de um filho, a pior delas, em que a ordem natural da vida se inverte. A lacuna deixada pela tragédia toma todas as imensas dimensões da dor que um fato como esse pode ter, em palavras que não caem na pieguice e contam com o tom certo do drama que narra.
Técnica que se refina no poema seguinte, Um Corpo Cansado pela Morte, que traz todos os elementos do luto, da roupa preta ao caixão, para um jogo metafórico e simbólico rico e bem realizado, numa sequência de versos que mescla tristeza com um indelével humor negro. Um dos poemas de Jorge de Reis-Sá chama-se Coisas Simples. Talvez fosse o título perfeito para o conjunto de poemas que está em Biologia do Homem. O talento do autor português, que publica livros em outros géneros e coordena uma editora própria, em tratar de sentimentos que nos parecem triviais é de fato apreciável. Um poeta que merecia ser mais publicado no Brasil.