Livro de Estimação

Maria Augusta Silva, Diário de Notícias, 2006

 Interioriza-se a pergunta: que sentido poderá fazer uma borboleta na capa de um livro, além do efeito gráfico, do agradável movimento das cores, do lirismo? Claro, é, também, uma imagem sugestiva de liberdade, do não-limite. Jorge Reis-Sá dá-nos outro suporte no seu recente trabalho de poesia intitulado Livro de Estimação: (…) “cada bater de asas daquelas borboletas, elaborando o amor / como gente grande, era um novo universo criado na imaginação // de uma criança. É melhor, será melhor, ficar no meu quarto. E, como / naquele fim de tarde, sob os jardins sus¬pensos da rua da Castela, rezar / para que as asas das borboletas, expressivas pelo amor consumado, / não causem danos às planícies do deserto de Mojave.” (pág. 45).
    Aqui temos o que de mais consistente irrompe da obra poética (e até do romance “Todos os Dias”) de Jorge Reis-Sá – os afectos visitando sempre a infância ou dela partindo não como muleta ou substância fácil para alimentar o verbo, mas usando-a enquanto mundo (animal) de “estimação” que possibilita um enunciado comprometido com a revisitação e o descentrar dos tempos, dos lugares, das pessoas, dos bichos, das coisas; comprometido com a memória. Essa memória disponível para ser identidade biográfica e referência, para ser caminho, contudo memória como linguagem do conhecimento, da reflexão, numa atitude dialógiea, dinâmica.
    Os poemas de Jorge Reis-Sá participam da vida mesmo falando de morte – e há muita morte no poeta, a morte do pai em primeiro plano no “Dinner at Eight”, um dos mais belos poemas deste novo livro.
    “Está tão cheia de morte a minha literatura. De velhos a debaterem-se com a sue¬ca nos bancos dos jardins de Arca D’Água, da Cordoaria, nos Aliados. (…) E no entanto está tão cheia de lembrança viva, forte e deslumbrada.” (pág. 63). Não é, porém, uma poesia funérea a de Jorge Reis-Sá, nem uma poesia hipercodificada. Rejeitando o estilo artificial, o poeta nunca perde de vista o apuro estético, a modernidade criativa. A sua arte literária, em particular neste Livro de Estimação (com posfácio de Luís Adriano Carlos), assume-se na respiração do contar, na tensão rítmica, abolindo por completo a fronteira entre verso e prosa, ou melhor dizendo, reforçando o todo poético. Como se na escrita de Jorge Reis-Sá – não raro próxima da sua formação académica em biologia – tudo se concretizasse com as mesmas possibilidades do “bater de asas” das por si amadas “borboletas mágicas”, as da infância, as das músicas de juventude, as de outras tantas depois.
    “E se o passado não existisse, que seria dos meus versos? (pág.21) – interroga o poeta. Não tarda a resposta na página 66: (…) “Lembrar é querer inventar o futuro para poder lembrar ainda mais”