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Melancolia

O tojo caindo o sol do fim da tarde. A caruma dos pinheiros
traz as crianças para a infância, os velhos jogam à malha
no caminho de Candeeira, as mulheres conversam
junto aos tremoços, chamando-os, desde o coberto,

para a merenda. A avó abre o postigo para ralhar
aos moços, leva-os para a cozinha onde lavam
as mãos do pó que a alegria trouxe. Iluminam-se
na broa de mais um domingo encomendado à felicidade.

Senta-te aí

A cadeira está vazia, um corpo ausente não aquece
a madeira que lhe dá forma. E não ouço o recado
que me quiseste dar, nem a tua voz forte que grita
meninos na hora de acordar. Ouço o teu abraço, no
corredor, em Gaia, e os olhos molhados pela inusitada

despedida. O sol foge. Mas o crepúsculo desenha
a sombra que tenho colada aos pés. Ou o espelho,
coberto com a tua face. Pai: a minha sombra és tu.

Poema ao Filho

Para o Guilherme

Cresceste tanto que deixaste os meus braços para trás.
Dantes, chamavas e eu ia levantar-te do berço, preocupado
com o teu choro. Tu nos meus braços, deitado e tão pequeno,
abraçavas-te muito à minha preocupação. Dizias baixinho:
vamos ouvir música, quero dançar contigo até que os
demónios da noite sejam longe. E eu ia. Ia tanto como
nunca, eu que nunca dancei para ninguém. Ligava a música,
colocava-a baixinho, tão baixinho que só nós sentíamos
o seu som: A rare and blistering sun shines down on
Grace Cathedral Park, e dançávamos. Ao som da música
eu era o Pai, ao som da música tu eras o Filho. Dançávamos
como dois anjos, sabes?, mas isso é muito expressivo e fica
mal no Poema. Dançávamos heróis, ainda é mais bonito.
Eu era o teu herói, aquele que te abraçava o corpo pequeno,
muito nu e encostado a mim. Tu eras o meu herói, as mãos
jovens ainda te seguravam com a força toda do mundo.
Podem dizer que dançarias com qualquer um que te levantasse
do berço e te sossegasse o sono. Mas não. Quem diz isso
nunca foi teu pai e nunca te sentiu filho. Nós éramos um só,
um lugar-comum, eu sei, mas éramos. Eu apenas contigo nos
braços, minha única roupa, único conforto, única protecção.
Tu embrulhado em mim pela tua pequena pele, inseguro
e tímido. E a noite, a longuíssima noite, eterna noite que
eu desejava nunca terminada. O céu no seu lugar devido,
a terra no seu lugar devido, e nós, nós os dois no lugar que
devemos para sempre um ao outro: um no outro, um para
o outro como duas peças de um jogo universal. Agora, filho,

agora cresceste e saíste dos meus braços. Mas terás um dia
alguém para embalar o sono como eu embalei. E este amor
que nasceu comigo e desabrochou contigo, este amor que
só eu, teu pai, posso oferecer ao longo da noite.

Bargos, Fevereiro de 2002

 

A Vida Inteira

A vida inteira esperei por ti.

Mesmo que ainda se não tenha passado
a vida inteira.

Poema em Prosa

Para o António Lobo Antunes

Tive um encontro de Verão com o senhor José Fontinhas.
Eu, o Pina, o Lage, tantos que têm vazio o coração pela
falta de novos versos. Foi pelas seis da tarde, a água do
Douro continuava a luta contra as ondas, na Foz. As

palmeiras encostadas ao vento e, mais uma vez, o auditório
pequeno para tanta saudade. Tive um encontro, chamo
José Fontinhas ao telefone, por favor, gritava o empregado
no Piolho há quarenta anos, contava o Pina. Ele, reverente

ao Poeta pregava-lhe a partida mais inominável – a da
identidade. O dito José sentado na esplanada, contou,
chamo José Fontinhas ao telefone, por favor, o Pina
na cabine espreitando o olhar impávido, o sorriso

invertido do Eugénio. O senhor José morrera quando
matou o pai, o senhor Eugénio nascera do amor à mãe.
Mas faltou tanta gente junto aos ciprestes do cemitério.
Pensei que as vendedoras do Bolhão deixariam os verdes,

que os rapazes da Foz que ele tanto amava se chegariam
em tronco nu de mais um salto desde o cais da Ribeira;
que as borboletas viriam em enxames de cor pousar na
urna e esconder o castanho da madeira nova. As árvores

abanando as nuvens junto à foz e o Pina a contar da morte
lenta do nosso poeta. Aponto uns versos pedindo ao rio que
desista de afrontar o mar. Encontrei no Verão o senhor
Fontinhas. Hei-de ir a Lisboa bater à porta do senhor Antunes.

Canção Fúnebre

[Auden]

Parem os relógios, desliguem o telefone, amordacem
o cão com um osso enorme. Calem os pianos e, com
um pequeno tambor, tragam o caixão, aproxime-se a dor.
Que os aviões se lamentem em círculos pelo céu, rabiscando

nas nuvens: Ele Morreu. Enlutem a nação no pescoço branco
das pombas, deixem os polícias usar as mais negras luvas.
Ele era o meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste; a minha féria
e o meu domingo de descanso. O meu dia, a minha noite,

a minha fala e canção; pensei que o amor durava para sempre
– não. As estrelas não são queridas, já: desliguem-nas.
Arquivem a lua e retirem o sol. Despejem o mar e varram
a terra, porque nada, agora, poderá vir a ser um dia melhor.


Vou para casa. Não esqueças a minha merenda,
o pão com tulicreme: sou pequena e vou para

a escola aprender as vogais. Se a memória partiu,
quem lembrará os meus dentes de leite?


Vou para casa esquecer que parti.


Terei a coragem de Pavese para deixar
tudo preparado e partir? Um diário
com todas as indicações de que o sim
se aproxima e a passos muito largos,
a reunião de toda a poesia num original
devidamente encapado e pronto a ser
editado na Einaudi? Trabalhar cansa.

Aceito. Mas cansa mais não fazer nada.