Todos os Dias

Maria Alzira Seixo, Revista Visão, 2006

Jorge Reis-Sá, autor de poemas e narrativas, dá-nos o primeiro romance, “Todos os Dias”. Livro breve, que se lê de uma assentada, deixa impressões fortes: sobre a morte e a saudade no seio de uma família (morre o filho primogénito, a velha avó) e a teia de sentimentos subtis e contraditórios que a une (os casais, pais e filhos, o afecto rival dos irmãos), convergindo para um lugar (a casa e o quintal) e tecendo os gestos da aparente regularidade do viver. Todos os Dias representa, no modelo de um dia único, em progressão durativa do alvorecer até à noite, a súmula do quotidiano familiar em anos e gerações, nos tempos cruzados e na perspectiva de cada um.
Essa ideia de um dia que é condensação da vida, imagem da sua brevidade intensa, vem logo, em estruturação pensada e clara, no pórtico do índice inicial (ao invés de muitos romances de hoje, magmas informes de páginas onde nem no fim há índice que indique as linhas de organização do livro, a confundir e a desencorajar a leitura): primeiro, o dia em aparência rotineiro, que prossegue de manha até à noite, e onde lampejam as clivagens que marcam a existência; depois, o culminar da noite no final fugaz, Tarde Demais, que remata o tempo em inexorável revelação.
O centro da história está no irmão mais velho que morre (Augusto), escritor, e o livro ressuma tristeza magoada atentar o desprendimento, a sensação do «tarde demais» face à morte, obsessão nostálgica na memória familiar, que se (des)orienta com outra figura de filho (Rafael) que Augusto lhes dá. Anulou-se, mas lega a criação: «Dava-se às letras, saíam-lhe do corpo», e assim o poder respeitado (augusto) da palavra emite uma entidade em jeito ambíguo (o divino arcanjo, o menino que é ai-jesus de todos) compensando-se em formas de criar.
Mas esta família não é mítica, nem mística, vive um quotidiano despretensioso entre o campesinato urbanizado e a pequena burguesia descendente, em termos comuns: «Acordar de manha, respirar e deitar-me à noite eram o espelho de uma existência qualquer.» Só que o talento de Jorge Reis-Sá vira o comum em representatividade: lidando com vida e morte, com amor e solidão, com individualidade rotineira e labor criativo, a família inscreve-se na história das mentalidades, escreve o contemporâneo.

A frase curta e vertebrada, de inesperadas quebras, caracteriza o livro, porque não é a que se usa para contar. Surge como unidade independente, sem subordinações nem inclinação de continuidade» Como se as coisas que diz (os membros da família, os objectos dos lugares, as sensações e sentimentos) estives¬sem desligadas, ou demasiado juntas para que o texto as ligue. Como elas, as personagens vêm também isoladas, os próprios capítulos são curtos e soltos, todo o livro é breve, como é breve a vida que diz. Apenas se alonga a memória que a morte traz: «A morte não tem porquês, não vale tristezas nem perguntas, apenas a lembrança.» O espaço do livro é como o espaço da casa, com o motivo do pão que se parte e comunga, como as galinhas à volta de Justina, a mãe, figurando o bulício da vida sem motivo: «Porque não existe vida mais feliz do que aquela que fizemos nossa e afagámos durante a noite. Todos os dias.» O livro é escrito com o ânimo do desencanto, mas é isso que nos encanta a nós, leitores.

 

Susana Nogueira, Revista Os Meus Livros, 2006

A cereja no topo do bolo
O que há de comum em todos os dias? A aurora, a manhã, o almoço, a tarde, o crepúsculo, o jantar e a noite – as partes em que se divide este livro. Somos acordados com Justina, a seguir surge Cidinha, depois António e, por fim, o Fernando. Eles aparecem e desaparecem, intercalados pelos pensamentos uns dos outros. O dia prossegue, lentamente, prenhe de acções repetidas, preenchido por rituais quotidianos. Estes homens e mulheres têm um comum uma perda: Augusto. Ele era o filho, o irmão, o neto. Mas era muito mais do que um familiar. A sua presença enchia a casa e a vida destas pessoas, de tal forma que depois de desaparecer, a sua falta continua a ocupar as suas mentes e corações.
No entanto, também Augusto tinha os seus segredos, os seus desejos e demónios, os quais acabamos por conhecer, num entrecruzar de sentimentos e vozes interiores. Através de uma escrita rica, extremamente sensitiva, emocional e profunda o autor consegue moldar-nos o raciocínio e conduz-nos por um dia cheio de recordações o de sentimentos. Cheio como a vida. No final, tudo se transfor¬ma. Serão reais estes personagens? Onde existem? A resposta chega “tarde demais”. É essa a cereja no topo do bolo.
5/5
Prós: escrita superlativa num equilíbrio entre emoções e inteligência
Contras: nada a assinalar

 

Agripina Carriço Vieira, Jornal de Letras, 2006

Entre o antes e o agora
    Entre o antes e o agora, com o pensamento num futuro que Augusto, a personagem central, já não pode ver existir, assim se constrói o úl¬timo e interessante romance de Jorge Reis-Sá, “Todos os Dias”. É antes de mais o título que atrai a nossa atenção não só pelos laços intertextuais que tece com o romance de José Saramago, Todos os Nomes, (eco de filiação por demais evidente e que se estende, entre outros aspectos, ao pensamento dialéctico acerca da importância de nomear), mas também pelos horizontes interpretativos que desta forma são criados, e que se tornam mais nítidos (ou talvez não, mas disso falarei mas tarde), quando nos é dada a conhecer a estrutura interna da obra. Com efeito, deparamo-nos com uma arquitectura discursiva enganosamente simples, constituída por duas partes: a primeira que retoma o título do romance e que se subdivide em capítulos intitulados com as designações de vários mo¬mentos em que se divide um dia de todos os dias (Aurora, Manhã, Almoço, Tarde, Crepúsculo, Jantar, Noite), e a última parte, «Tarde Demais», sem qualquer compartimentação textual. Uma observação mais atenta e intencional da construção diegética, na certeza de que todos os elementos são meios e instrumentos de interpretação, leva-nos a constatar que estamos perante uma cuidada e complexa construção diegética, onde cada componente textual e paratextual concorre para um mesmo fim: criar um horizonte de leitura marcado pela perda. Nessa perspectiva, não será seguramente um acaso que o dia de Todos os Dias esteja dividido em sete momentos (alguns dos quais pouco convencionais), sobretudo se pensarmos na simbologia e nas conotações desse número: de totalidade, de conclusão de um ciclo – de uma vida. Reencontramos a mesma intencionalidade indiciai na divisão dual do corpo do texto, que remete para a organização maniqueísta do nosso mundo, inexoravelmente dividido em dois, que neste universo ficcional se consubstancia na divisão entre o real e o imaginário, o vivido e o desejado, a vida e a escrita, a mentira e a verdade, a construção e a desconstrução. Todos os elementos paratextuais, os dois já re¬feridos mas igualmente as epígrafes inaugurais e sobretudo a perturbante citação apresentada numa das badanas do livro, onde se apresenta a definição do termo «perda», conduzem o leitor para um universo marcado pela dor, a afectividade, os remorsos … a perda, inabalavelmente presentes dia após dia, todos os dias, das vidas de uma família.
    Num espaço não nomeado (tal como a cidade do romance de Saramago), circunscrito à casa familiar, ao cemitério na aldeia e ao apartamento na cidade, um número muito reduzido de personagens vai alternadamente tomando a palavra e contar tempos anteriores ao presente, «no esquecimento, construindo novas memórias» porque, como nos diz António, «o tempo acaba sempre por rasurar o que sentimos, por inundar de horas, de demasiadas horas, o amor que temos pelo outro». É pois sobre uma teia de relações, num rizoma de afectos e desafectos, que se constrói a narrativa. Nos primeiros momentos de leituras, percorrendo os capítulos iniciais, uma sensação de estranhamento e de perturbação invade-nos, e é com alguma embaraço (inteiramente desejado pelo escritor), que entramos na intimidade das personagens, que em discurso de primeira pes¬soa, como se de curtos monólogos se tratasse, falam de si e dos seus. O carácter intimista dos textos, liberta o seu narrador de qualquer necessidade de explicações ou identificações, mas obriga o leitor a uma atenção redobrada para antes de mais identificar a voz que se faz ouvir e dessa forma poder apreender meandros dos seus pensamentos e perceber o não-dito, o subentendido, tudo o que é ciosamente escondido. Cada capítulo dá conta de um ponto de vista diferente acerca das vivências relacionadas com os vários momentos do dia.
    Apesar de todas as personagens serem nomeadas, a identificação da voz narrativa faz-se pelo viés dos laços familiares e afectivos que entretece com o outro, num mundo de afectos em cujo centro está a figura de Augusto, o escritor – filho mais velho de António e Justina, irmão de Fernando, tio de Rafael, cunhado de Manuela, neto de Cidinha. A personagem de Augusto emerge e destaca-se deste núcleo familiar, antes de mais pela ausência (não toma a palavra durante toda a longa primeira parte do romance, facto tanto mais estranha sendo ele um homem que dedicou toda a vida à escrita), mas igualmente porque é ele que preenche os pensamentos e condiciona as atitudes das restantes personagens. Paulatinamente, ouvindo as recordações de António, Justinha, Cidinha e Fernando, vamos construindo o puzzle da história daquela família, marcada pelo desaparecimento de Augusto. A morte do neto, filho e irmão mais velho, tal como a sua vida já o tinha feito, vai originar um turbilhão de sentimentos e sensações contraditórias, particularmente intensas e dolorosas para o irmão, dividido entre sentimentos tão antagónicos quanto a dor e a felicidade, o amor e o ciúme, a admiração e a inveja, que o levam a sentir cada dia a falta de Augusto para de seguida afirmar: «Tu morreste tão cedo, Augusto. E eu fiquei aqui, feliz, sem ninguém à frente, sem essa árvore de sombra frondosa, pronto a crescer. Não entendo o porquê da morte porque não entendo o porquê deste sentimento ambíguo na vida. Desejei tantas vezes que morresses que, quando finalmente acabaste por me fazer a vontade, me achei um assassino cruel. / Por isso, todos os dias serei obrigado a acordar com a noite nos olhos para que o sol só apareça depois de pensar em ti, Augusto, em ti e na tua maldita morte que me enegrece o coração.»

    Ouvindo as memórias dos que ficaram, vamos descobrindo aquilo que se inscreve em filigrana nas linhas do pensamento: a dedicação exclusiva dos últimos momentos da vida de Augusto à escrita de um romance, os segredos que, apesar de ninguém ousar verbalizar, assomam por entre as palavras, deixando adivinhar relações interditas, infidelidades, paternidades escondidas, que se tornam cada vez mais claras, ilusoriamente claras como veremos, à medida que nos aproximamos do final da primeira parte. Com efeito, toda a construção anteriormente criada é posta em causa com a leitura das últimas duas páginas do texto, que, recordo, tem por título «Tarde Demais». E é com efeito tarde demais (porque depois da história contada) que descobrimos que o relato da existência daquela família, que o raciocínio elaborado a partir as páginas que lemos, se inscreve sob o signo da dupla ficção, numa mise en abyme magistralmente executada, apenas desvendada nos derradeiros parágrafos do texto.
    A última parte, a mensagem escrita deixada por Augusto a Rafael, ao deitar por terra a construção de palavras anteriormente erigida, ao negar a veracidade do que fora dito ou apenas sugerido, desempenha uma dupla função, a primeira de desconstrução diegética, a segunda de apologia do papel fundamental da escrita na construção de novos mundos, na libertação das existências, que Augusto expressa desta bela forma, reveladora de uma grande sensibilidade poética: «Longe da tua mãe, único tudo que amei, longe daqueles que não soube fazer feliz, construindo num texto toda a vida que não tive, toda a pessoa que não fui, longe de ti, meu filho que tanto queria, ofereçam-me o perdão. Mas, mais do que isso, inventar um dia onde tenha eu parecido um homem feliz todos os dias».
Tal como nas obras poéticas, com as quais este texto comunga de inúmeras e interessantes afinidades, tanto ao nível da estrutura discursiva (de onde se salienta a construção por meio de anáforas e anástrofes de grande beleza) como da capacidade de convocação de inúmeras imagens e sensações em curtos espaços textuais, “Todos os Dias” de Jorge Reis-Sá surpreende pela elegância e pureza da escrita.

António Jose Teixeira, Diário de Noticias, 2006

Estreia num romance de amor: dar vida à morte
Jorge Reis-Sá faz da perda familiar um pretexto para depurar a palavra a explorar os labirintos da tragédia humana.

    “Todos os Dias” é um romance de amor, uma história familiar de afectos começados, alimentados, interrompidos, suspensos, memórias dolorosas, fundas, quase tão efémeras como eternas. Mostra-nos um autor às voltas com a sua genealogia, com os labirintos da tragédia humana, com os começos férteis da vida, com os amores mais puros, imaculados, mas também com a finitude imprevisível de pais, filhos, netos, com um destino indecifrável da biologia humana entre o berço de todas as esperanças e o cemitério ali tão perto, iluminado e florido para ‘dar vida à morte’.
    É a história do paradoxo humano, a lição que a vida nos faz aprender, alegrias filhas da tristeza, morte que valoriza a vida. Vida e morte. Angústia dos dias feitos de começo e fim, e de muitos entretantos, tempo de memória obsessiva, talvez porque todos os dias o presente se faz de ausência, talvez uma catarse muito lúcida da precariedade humana.
    “Todos os Dias” talvez não chegue a ser todos os dias. Os dias continuam sempre, inexoráveis, mas vão deixando alguém para trás, deixando sempre algo de nós para trás. Mas é desse ficar para trás que se alimenta quem continua, nem sempre em frente.
    É por isso que este romance se levanta na aurora do dia e obedece ao ciclo solar: levanta-se, acorda, olha e sai para o quintal, para a rua, apanha comboios, pára, procura alguém entre os paladares do almoço, faz pausas, atravessa-se de silêncios, deixa crianças entregues à memória, fala a várias vozes, espera o António ou a Justina; senta-se na varanda à espera, sempre à espera, inunda-se de passado, entra e sai da Igreja, do cemitério; cai com a noite, os dias caem com a noite, janta em família, tenta construir novas memórias, mas não escapa ao silêncio tonitruante da morte, essa ausência física que dói; por fim, o romance fica em silêncio, apaga a luz na esperança de redenção, na esperança da invenção de dias novos, de dias felizes.
    “Todos os Dias” não deixa de ser mesmo todos os dias. É a marcha imparável do tempo em que nem por isso, ou talvez por isso, se chega tarde, tarde demais. Não é um arre-pendimento, é tantas vezes uma fatalidade, um destino. Já André Malraux dizia que “a tragédia da morte consiste na transformação da vida em destino”. O mesmo Malraux que desvalorizava a gravidade da morte. Grave é a dor. E é a dor que perpassa e trespassa uma família ceifada por vazios sombrios. São mães que morrem velhas com ‘a vida toda para viver’. E filhos, o Augusto, que morreu novo, ‘tinha a vida toda para ele e já não tem’.
    “Todos os Dias” é um requiem em que se morre muito, em que se vai morrendo, em que se morre pelos outros, por causa dos pais e dos filhos. É um livro de cemitérios familiares, íntimos, de cemitérios de corpos e almas perdidos, onde se passeia entre as lápides como se passeasse entre as árvores, onde tudo parece rodeado de negro alcatrão. A Justina frequenta assiduamente o cemitério: ‘Quer mudar as flores para dar vida à morte.’ Quer. Mas a voz do autor sabe que os mortos não têm redenção: ‘Não ressuscitam, nem com o cheiro das pétalas, nem com a fé.’ Talvez por isso, na sua Biologia do Homem, Jorge Reis-Sá tenha avisado os amigos: Torque procuro no poema final e definitivo a face de Deus, todos os versos que escrevi me hão-de condenar ao inferno.’
    “Todos os Dias” é a verdade de Reis-Sá, memória de memórias que lhe são familiares como quando o escritor Augusto confessa ao pai que as notas que tira do seu miradouro são ‘essenciais para que existam as vidas de que um texto necessita, como se a vida que inventasse não fosse inventada mas a mais pura verdade. Ele escrevia a verdade sentado à secretária, à noite, mas procurava-lhe os contornos, todos os dias, sentado na varanda, vendo a vila ao fundo da imagem’.
Trabalhada a seiva da árvore fundadora de Reis-Sá, restam memórias de muitas ventanias e também esperanças de vida. Talvez a morte seja uma doença da imaginação. Ou talvez a outra face da moeda que nos move. Quem sabe, uma questão de sortilégio… Não quero pensar como Sófocles quando dizia que não ter nascido é muitas vezes uma bênção. Prefiro pensar como Jorge Reis-Sá: ‘… não existe vida mais feliz do que aquela que fizemos nossa…’ Todos os dias.

Susana Nogueira, Revista Os Meus Livros, 2007 (um dos livros do ano)

Um dia como todos
    A infinidade de pequenos gestos que se sucedem no passar dos dias acaba por ser a construção da vida de cada pessoa. Este é um princípio tão básico que muitas vezes acaba por ser esquecido, no remoinho incessante de rotinas e rituais quotidianos. “Todos os Dias” de Jorge Reis-Sá (Dom Quixote), relembra-o.
    O enredo está dividido como se seccionasse um dia: Aurora, Manhã, Almoço, Tarde, Crepúsculo, Jantar e, por fim, Noite. Os personagens vão-se sucedendo, mas numa versão introspectiva, só ao nível de pensamentos que lhos ocorrem e que estão acessíveis ao leitor, a quem cabe juntar as peças mentais e emocionais para construir a história deste dia, que reporta a muitos outros dias que lho antecederam. Cedo se nota que Augusto é o ponto de sustentação de todos e que a sua perda significou um esvaziamento progressivo das suas existências. O leitor acaba por ter também acesso ao próprio Augusto, aos seus desejos, anseios e segredos, dos mais puros aos mais obscuros. Tem de ser lido.

Carlos André Moreira, Mundo Livro, 2008, edição brasileira

Herbert Quem?
    Juro que foi pura coincidência. Eu já havia começado este texto antes das notícias sobre a internação do Saramago. Primeiro, quero que me façam um favor. Leiam o trecho abaixo, retirado do ótimo Por que ler os clássicos (que está ganhando nova edição, formato bolso, pela Companhia das Letras), do mestre italiano Italo Calvino, sobre outro mestre, o argentino Jorge Luis Borges. Tentem reter com vocês a idéia central e o nome próprio que aparece no fim do trecho. Depois a gente continua.
    O que mais me interessa anotar aqui é que nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura como extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial “, para usar um termo que será desenvolvido mais tarde na França, mas cujos prenúncios podem ser encontrado em Ficciones, nos estímulos e formas daquelas que poderiam ter sido as obras de um hipotético Herbert Quain.
    Vamos adiante. Calvino aplica seu raciocínio a Borges, mas podemos ser mais amplos e levar o mote mais longe: a literatura é um jogo sofisticado entre adultos vivos e mortos. Logo, não é raro topar com casos em que a admiração de um autor por outro levou a que um deles encampasse para si elementos da obra daquele que admirava, e aqui não se fala do plágio sobre o qual discorremos a pouco na tradução. Fala-se do intercâmbio pelo qual a leitura que um grande artista faz da obra de outro é ela mesma uma obra artística de vulto. E não estou estou falando de crítica, estou falando de livros nos quais outros livros de outros autores são revisitados de algum modo: personagens rearranjados (Proust escreveu sobre Bouvard e Pècouchet, de Flaubert, por exemplo). Mundos que são glosados por outros artistas em suas próprias obras (amigos de H.P. Lovecraft, como Clark Ashton Smith e August Derleth escreveram histórias passadas em sua fictícia Arkham) ou, do modo mais simples, o próprio escritor vira personagem (como, entre centenas de exemplos, Colm Tóibin fez com Henry James em O mestre e Michael Cunningham fez com Virginia Woolf em As horas).
    Pedi para que vocês mantivessem o trecho de calvino na cabeça por dois motivos: o primeiro porque Borges foi ele próprio um ponto alto desse tipo de jogo, com contos que eram como resenhas de livros reais e imaginários, histórias protagonizadas por escritores orientais antigos que de fato existiram e outros artifícios literários desconcertantes. E porque Borges foi ele próprio o elo inicial de um dos mais profícuos jogos literários do gênero. justamente a existência (ou não) do escritor irlandês Herbert Quain, o nome citado por Calvino.
    Quain vem a público no livro de contos Ficções (1944), de Borges, um dos grandes clássicos da prosa em qualquer época – que ainda tem edições antigas da Globo em catálogo e as novas da Companhia das Letras. O conto Exame da obra de Herbert Quain é um dos construídos no estilo que notabilizaria Borges: em vez de um caudaloso romance de fantasia, um conto no qual o autor escrevia uma breve resenha crítica sobre o livro que havia imaginado mas não escrito. O resultado é magistral:
    Herbert Quain morreu em Roscommon; comprovei sem espanto que o Suplemento Literário do Times mal lhe dedica meia coluna de piedade necrológica, em que não há epíteto laudatório que não venha corrigido (ou seriamente admoestado) por um advérbio. O Spectator, em seu número pertinente, é sem dúvida menos lacônico e talvez mais cordial, mas equipara o primeiro livro de Quain – The God of the Labyrinth – a um de mrs. Agatha Christie e outros aos de Gertrude Stein: evocações que ninguém julgará inevitáveis e não teriam deixado alegre o defunto.
    O Quain fictício criado por Borges é um autor de língua inglesa cujo primeiro livro foi um romance policial e daí para diante se entregou a experiências narrativas de segmentar um enredo para cobrir todas as possibilidades possíveis de uma história e as várias identidades que um personagem pode assumir. O conto-resenha continua esmiuçando detidamente os livros fictícios do hipotético “Quain” (em espanhol como em português é clara a semelhança entre o sobrenome em sua pronúncia inglesa e as palavras “quem” e”quién”): um romance contado em reverso e cujos capítulos retratam hipotéticas vésperas da primeira cena; um livro em dois atos nos quais os personagens do primeiro retornam no segundo com identidades trocadas e uma coletânea de contos.
    A idéia de Quain e de sua poderosa obra inexistente causou profunda impressão no próprio José Saramago, a ponto de ser retomada em um de seus melhores romances, O ano da morte de Ricardo Reis. Esse livro por si só já se apresenta como um instigante jogo intelectual: narra a volta a Lisboa do médico Ricardo Reis no mesmo ano da morte de Fernando Pessoa. Os apaixonados por literatura reconhecem o jogo porque Ricardo Reis é um dos heterônimos criados por Pessoa. Reis desembarca de um navio de bandeira inglesa e, ao desfazer sua mala já no hotel em que se hospeda, percebe que manteve consigo um exemplar do livro The god of the labyrinth, de um escritor irlandês chamado Herbert Quain, que retirara na biblioteca do navio e não devolvera:
    Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se Quain, Quem, escritor que só não desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma vulgar história de assassinato e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso, e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não é como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história.
    Como se vê, Saramago recupera Quain e o tema no qual Borges o havia inserido inicialmente, o de uma reflexão sobre o que são as narrativas de mistério e o mistério de todas as narrativas. Um contexto semelhante ao que Jorge Reis-Sá, um escritor português de safra mais recente, usará ao transformar as linhas inexistentes do inexistente Herbert Quain em epígrafe para seu romance recentemente lançado no Brasil pela Record, Todos os dias – e aqui temos outra vez um diálogo com o próprio Saramago que vai além da utilização de Quain, mas também no título que ecoa o alegórico Todos os nomes. Diz a epígrafe de Quain, apresentando o mote do livro: “A vida sempre acontece tarde demais”.
    O retorno de Quain na obra de Jorge Reis-Sá é apropriado no momento em que Todos os dias é também uma narrativa que, embora não de corte policial, se estrutura em uma surpresa que, revelada ao fim do livro, reformula todo o entendimento que se teve do que foi lido até ali. Mas essa surpresa eu não vou revelar, vão lá ler o livro – que eu li, a propósito, por indicação da Priscilla, que tivemos de volta no blog esta semana, e portanto este post é a ela dedicado.

Miguel Real, Jornal de Letras, 2006

Após a edição das narrativas compiladas em “Equilíbrios Pontuados” (2004), uma das quais, “Por ser preciso” (pungente narração da morte do pai do narrador), fora galardoada com o Prémio Bocage e individualmente publicada pela editora Cosmorama, Jorge Reis-Sá publicou o primeiro romance, “Todos os Dias”. O que traz o romance de Reis-Sá de novo à literatura portuguesa? Estilística e lexicalmente, nada avança face ao modo de escrita da “escola” Lobo Antunes – J. L. Peixoto. Tematicamente, ergue um novo habitáculo literário para a existência, não o do vazio dos dias (abundantemente explorado desde a década de 50), mas, através de um duplo registo, o da simplicidade da existência: 1. – a descrição de vidas passivas, aceitadoras e resignativas (como a da maioria dos reformados), que subjaz de comum e permanente a “todos os dias”; 2. – a normalização da morte, despersonalizando-a literariamente, descarregando-a de consonâncias românticas, trágicas, dramáticas ou existenciais, levando este tema ao máximo de ateísmo até hoje conseguido na literatura portuguesa, que é a de não lhe conferir importância – a morte existe, como existe a pedra e o vendedor de castanhas, isto é, a morte é um dos elementos da simplicidade da existência.
    O autor explora magistralmente a ideia da existência humana sem mais, isto é, a de ser-se passivo face ao mundo, às imposições estaduais, aos constrangimentos sociais: António aceita a reforma e compensa o vazio operando pequenos trabalhos em casa; Justina aceita a vida tal como ela lhe acontece, um quintalinho, uma cadela e umas galinhas por criar, duas campas de familiares no cemitério, a missa ao fim do dia, o neto para adormecer, o marido para dar de comer, o trabalho no posto de saúde para trabalhar. Cindinha, António e Justina assumem-se como seres sugados de desejo, e se ou quando o têm resignam-se a deixar de desejar. Justina aceita a morte do filho, Augusto, e da sogra, Cindinha, a ambos respeita e em sua memória depõe flores no cemitério, aceitando igualmente a sua futura morte. A vida continua e Justina canta em surdina na cozinha, à noite, manifestando a sua alegria: tudo é narrado sem tragédia, apenas o drama da morte de Augusto sobressai na memória de todas as personagens, como uma mácula indelével que se quer apagar e esquecer.
    Fernando, filho de Antónia e Justina, é possuído pela ambição: primeiro, de ser o que o fora o meio-irmão, Augusto, e, segundo, ultrapassar este, tornando-se gerente bancário e dando aos pais o único neto, Rafael, na infância em tudo semelhante a Augusto. Porém, também o sentimento de ambição faz parte da simplicidade da existência, que a uns motiva e a outros faz fracassar, e quando Fernando conquista o lugar familiar e social desejado, retorna à mera passividade dos dias, exteriormente rotineira e interiormente irrealizada face à suspeita de que a sua mulher, Manuela, gostaria de Augusto. Para Fernando, desde a infância, Augusto ostenta-se como modelo, modelo que se revela inatingível porque o horizonte de vida do irmão (escritor) desafia a simplicidade da existência, provocando um corte vital e memorialístico em toda a família. É sempre face à morte de Augusto que a restante família mede os seus dias, como uma marca totémica que instaura o antes e o depois.
    E igualmente com a simplicidade da existência que António preenche os dias: come, brinca com o neto, lê o jornal, vê televisão e adormece. A escrita branca de Reis-Sá, que não substantiva mais do que adjectiva, harmoniza-se com a brancura plana da existência de três narradores velhos, dois vivos (António e Justina) e um morto (Cindinha, que “vê” pelos olhos dos vivos). Um rasgão de realidade paralela corta de quando em vez a narração: no passado, o Janelo esperando de manhã pela Justina; no presente, pedindo o jornal emprestado; para cortar os dias, António anima-se numa conversa sobre a equipa de futebol da terra (não identificada, mas fronteira a uma grande cidade). Todas as personagens caminham para a morte e os mortos caminham para o definitivo esquecimento, mas, diferentemente do expressionismo de Raul Brandão, que sobre a morte desenha páginas trágicas, ou Rodrigues-Miguéis, cujas personagens espantam a morte narrando milhentas peripécias circunstanciais, enchendo o texto de pormenores de vida, ou do modo existencial de Augusto Abelaira, evidenciando que a morte constitui a prova absoluta da ausência de sentido para a vida, Reis-Sá trata a morte como mais um dos elementos da simplicidade da existência. Todas as personagens estão narrativamente vivas, os vivos em casa, o corpo dos mortos no cemitério e o seu espírito na memória dos vivos. Por isso, em Todos os Dias, vivos e mortos convivem enquanto personagens de idêntico estatuto.
    Um final inesperado subverte o sentido e a estrutura narrativa, revelando a identidade do narrador. O que pareciam memórias realistas ganham o estatuto de construções ficcionais e o que fora dado como imagem directa da realidade torna-se agora mera perspectiva de um único olhar. Fecha-se o romance fica-se a pensar, de cérebro dividido entre o grosso da narrativa e o final inesperado. Fica-se apensar: algo raro quando hoje se fecha um romance português.

Rui Pedro Tendinha, Noticias Magazine, 2006

Um poeta que agora tenta o romance. “Todos os Dias” é um romance sobre a perda. Mas na perda está o ganho, o ganho de podermos descobrir um novo romancista que escreve coisas como «eu gosto que anoiteça aqui porque é este o quintal que me permite todo o esquecimento e toda a memória». Jorge Reis-Sá chegou agora à prosa depois de quatro livros de poemas antes dos 28 anos, mas neste romance continua à vista desarmada uma poesia lúcida. É um romance entre quintais e desejos domésticos que o próprio sintetiza: «Um livro onde se fala das coisas mais simples do quotidiano, sobre o “colocar a roupa a secar”, “dar de comer às galinhas”, etc. Um livro polifónico onde num dia se percorrem todos os dias de uma família. Um romance doméstico.»
    Todos os Dias. Cenas de família em que a morte é também figura central. Um relato de existências humanas onde se transpõem actos de ternura, actos de paternidade. São 186 páginas de «trabalho de amor» que se abrem aos nossos olhos através de uma capa de extremo bom-gosto de Henrique Cayatte. Antes deste livro, Reis-Sá, além das suas lanças na poesia, tinha organizado diversas antologias, entre as quais “Anos 90 e Agora – Uma Nova Antologia da Nova Poesia Portuguesa”.

Público, 2006

    “Todos os Dias” é o romance de estreia de Jorge Reis-Sá, até aqui apenas conhecido pela sua actividade enquanto poeta e editor.
    E desta primeira obra, o mínimo que se poderá dizer, é que o registo em que se escrevem as 190 páginas deste livro é produto de um intenso labor, de uma justa apropriação das formas, acessível apenas a quem trabalha um texto palavra por palavra.
    A obra passa-se num só dia, como se todos os dias das nossas vidas se pudessem padronizar num só. Existe uma aurora, uma manhã, um pequeno-almoço, uma tarde, crepúsculo, jantar e noite – justamente os vários capítulos em que se divide o primeiro romance de Jorge Reis-Sá.
    Num registo maternal para com a banalidade dos dias, salvaguardando a riqueza linguística do norte do país, “Todos os Dias” faz-nos mergulhar numa ruralidade urbana, pautada por personagens bem reais, sendo que algumas situações mais extremadas só servem para pintar de maior verosimilhança uma humanidade que tantas vezes queremos esconder dos outros. Por isso, “Todos os Dias” por vezes dói. Incomoda pela frontalidade.
A não perder, por quem tiver gosto pelo poder da palavra.